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quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

O gaitista - um conto azul


Em um desses dias chuvosos de outono, no fim de tarde, sentei em um banco coberto numa praça, das tantas que sentamos para descansar, esperar, para aguardar o fim da chuva. A memória fraca da gente se esquece dos milagrosos guarda-chuvas. Mas enfim, sentado no banco, por instinto e talvez pelo clima na qual eu me encontrava, comecei a assoviar suavemente um blues, daqueles de solos de gaita. Já tinha tentado várias vezes tocar esse instrumento, mas minha capacidade musical era limitadíssima, estava com uma na bolsa, ironicamente. Mas, como um vulto, surgiu na minha frente um velho andarilho, barba má feita, sobretudo e bengala, molhados pela chuva, fedendo a outros carnavais, uma voz rouca e grave. Olhou para minha desatenção e riu, e foi quando o notei. Não se apresentou, não me apresentei, só me perguntou se eu tinha tempo para ouvir uma história antiga de andarilho que ele se lembrara ao ver-me assoviando (mesmo que mal) um estilo de música tão amado por ele. Vi a chuva forte e, ocioso, aceitei a proposta do maltrapilho.
 “Um tempo antes de você nascer, ouvi uma história em um dos muitos bares que já entrei de um jovem, um jovem que, diferente de você provavelmente, era pobre e, sobretudo, triste. Só tinha o que comer e o que vestir. Seus pais morreram quando alcançou a maioridade, e a única coisa que restou foi ele e os ensinamentos dos pais, e uma gaita. Aos 10 ganhara uma gaita de brinquedo e ele se viu encantado. Aos 18, a primeira coisa que comprou do seu primeiro salário, em um bico, foi uma gaita de verdade. Chinfrim, mas de verdade. Aprendeu em pouco tempo, nunca teve aulas ou soube teoria musical, tocava com a intuição, com o amor que não tinha. Ele expressava toda sua tristeza no blues que tocava e improvisava, a tristeza não causada por sua condição social ou financeira, mas porque ele sentia dentro de si um vazio, e o blues preenchia-o. Eu o conheci pessoalmente, vi ele tocar em um barzinho temático de blues, caindo aos pedaços, mas um bom lugar. Ele tocava com uma perseverança e eloquência notáveis, com as palhetas da gaita falhando e desafinadas. O som não muito agradável do instrumento enaltecia-se com o sua mente, sua tristeza. Após essa noite, pelo que me contam, ele pegou uma chuva absurda, como essa de hoje, mas ele foi, na madrugada, até onde morava de aluguel, uma quitinete confortável, tocando sua gaita e chorando a chuva que caía. Não adoeceu, mas sua gaita ficou mais enferrujada, acabada. Chorou a tristeza dos séculos e, com tudo o que tinha comprou uma gaita nova, dessa vez uma melhor, na medida do possível, em outro dia chuvoso, vestindo um sobretudo amarrotado. Ela o acompanhava para onde ia..."
Ele parou um instante, abriu a vestimenta e tirou uma gaita, toda estourada a coitada, mas funcionando, e ele tocou-a com a emoção de uma mãe ao ver o filho realizando seus desejos, de um sonho realizado, de uma tristeza enraizada e acolhedora. Eu já estranhava e veracidade do conto, pelos detalhes, mas ao ouvir tal melodia me surpreendi com tal história. Não chorei, mas um pensamento complexo tomava meu cérebro, fechei os olhos e aproveitei o momento. Quando ele parou, eu perguntei a ele se era sua história, mas ele não me respondeu, ignorou e riu. Antes de ir embora, vi a gaita dele toda velha, e, mesmo com o seu som belo, ofereci a minha que estava na mochila. Ele recusou, pelo contrário, ofereceu a sua dizendo: "Agora é a sua vez, mostre sua tristeza em blues". Eu, envergonhado, tentei tocar alguma coisa naquela velha gaita. Não saiu muita coisa: “Grande começo", o andarilho disse. Riu, e foi-se. Antes que eu pudesse perceber e devolver seu tesouro, ele já tinha sumido. Talvez ele tenha se encontrado com a ventura e contado tal história a ela, enquanto passeava pelos séculos. Guardo aquele presente a sete chaves, degustando algumas vezes o som daquela tristeza presa na alma, liberada num tom azul diatônico, um azul de amor.